As Paranoias de Alastair Dias

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“Está ficando escuro, escuro demais para ver.
Sinto-me como se estivesse batendo na porta do Céu.”
Bob Dylan





Lembro-me como se fosse hoje, tão concreto, real quanto eu. Recordo-me claramente de andar por uma trilha estranha, de árvores enegrecidas e de galhos retorcidos que parecia quererem me agarrar e me levarem para as entranhas da terra, levar-me para o Inferno. Meus pés descalços tocavam um chão pedregoso e ameno, sem o mínimo sinal de vida vegetal.

Eu olhava em volta, buscando algo, alguma coisa, alguém. Entretanto, tudo o que via era uma paisagem morta, nefasta, sombria e medonha sob uma nuvem negra que descarregava raios avermelhados que atingiam seus alvos com extrema violência e precisão, causando incêndios de chamas rubras. Era uma cena muito assustadora e bela.

Percebi logo que me vestia como aquelas guerreiras que viveram entre o fim do período clássico e o início do medieval. Sentia-me como uma amazona, uma guerreira medieval, ou algo parecido. Claro que era uma roupa mais folgada, mais feminina e estilizada do que as de antigamente, contudo em nada devia ao charme e poder.

Senti um peso considerável em minhas costas e soube imediatamente que portava uma espada. Aquilo me fez estremecer um pouco. Há anos sempre fui fascinada por armas brancas, sobretudo as espadas antigas e agora — mesmo que em sonho — eu tinha a oportunidade de manejar uma!

Estranhamente, ao fundo, como uma trilha sonora, pude distinguir uma canção familiar. Havia ouvido-a em inúmeras versões, como a de Avril Lavigne e Zé Ramalho, embora preferisse muito mais pela voz potente de Bob Dylan. Contudo, naquele momento era a versão rock’n’roll que ditava a letra. Quem cantava era Axl Rose, o vocalista do Guns N’ Roses!

Quão surreal havia se tornado meu sonho! Era eu uma guerreira vagando por uma trilha deserta e sem vida, trajando uma vestimenta estilizada e ouvindo a música que tanto gostava de ouvir! O que mais faltava acontecer?

Bem, acho que minha resposta fora logo respondida: diante de mim estavam dois imensos portões dourados. Cada um possuía um símbolo específico e desconhecido, porém bem desenhados naquele metal tão duro. Cada portão era guardado por uma criatura encapuzada que dedilhava uma harpa que emitia o som de guitarras, harmonizando-se com a música que parecia se tornar mais alta.

Examinei-os atentamente, buscando mais detalhes acerca do que queria significar tudo aquilo. Não havia fechaduras, travas, maçanetas, nada que as fizesse abrir ou se fechar.

De repente, para meu espanto, um dos portões se abriu, revelando um caminho florido, cheio de árvores floridas, borboletas para todos os lados, pássaros cantando, animais saltitantes por todos os lados. Era meio estranho, muito infantil para o meu gosto.

Claro que eu não entraria ali, pois era emboscada na certa. Quem, por amor de Deus, entraria por um caminho tão bonitinho assim, sem pestanejar? Eu não! Permaneci em pé, olhando para toda aquela tentação. Nem que me pagassem eu entraria.

Creio que após três ou quatro minutos a outra porta se abriu, revelando um caminho semelhante ao mesmo. Aquilo era sacanagem! Duas tentações iguais?! Que piada era aquela? Agora fiquei confusa quanto ao caminho que deveria escolher.

De repente surgiu um homem atrás de mim. Era um andarilho; ele assobiava tranquilamente o refrão da canção que ecoava por toda a extensão de meu sonho. Vestia-se com roupas gastas, feitas de couro acinzentado, sendo cobertas por uma enorme sobrecapa que arrastava sobre o solo cheio de pedras. Um capuz velho cobria-lhe o rosto, deixando visíveis apenas mechas dos cabelos em tons de prata e branco.

Olhei-o com certa repugnância aquela figura que se aproximava. Andava com calma, sem o mínimo de pressa, apoiando-se no que julguei ser uma bengala. Aquém seria aquele ser estranho e peregrino que se aproximava.

Ele passou por mim. Não pronunciou uma palavra sequer. Apenas entrou pelo portão da esquerda, o segundo a se abrir.

— Ei! — chamei, estranhando aquele descaso.

O andarilho parou, virou-se lentamente para mim e sem me fitar diretamente.

— Diga! — pediu ele, com a voz grave, tão firme quanto possível a um ser humano.

— Para onde você vai? — perguntei.

— Para algum lugar. Se quiser me acompanhar...

— Que lugar seria esse?

— Ainda não sei, mas pretendo descobrir.

Achei aquilo muito estranho.

Ignorando meu espanto, o peregrino voltou a andar. Ele parecia determinado a chegar ao local que tanto queria alcançar.

Sem muita opção naquele momento, segui-o.

— Quem é você? — indaguei, tentando ver seu rosto.

— Sou o que serei — respondeu-me, parecendo muito mais filosófico do que casual.

— É algum anjo ou demônio?

Escutei um riso baixo vindo debaixo do capuz.

— Garanto que não sou nem anjo, nem demônio — respondeu-me —, mas sou o que serei pela eternidade, pelo passar dos tempos, das gerações e das eras. Sou o que serei, assim como fui ontem, sou hoje e serei amanhã. Sobreviverei ao passar dos séculos, a guerras, a fome, a extinção humana... Sou o que serei.

— É Deus?! — atrevi-me a perguntar, entre o assombro e o receio.

Agora ele gargalhou, zombando de minha pergunta tola, o que me deixou irritada.

— O que você sabe sobre Pactos de Sangue? — replicou, após gargalhar por quase dez segundos.

— Pactos de Sangue?! — estranhei.

— Sim.

— Nada.

— Nunca fez sequer um?

— Não.

— Certeza?

— Sim.

— Hum...

Ele pensou um pouco. Ao fundo a canção parecia se iniciar outra vez.

— Por que tantas perguntas sobre isso? — questionei-o.

— Pactos de Sangue são feitos de formas diferentes, com ou sem o conhecimento prévio da outra parte envolvida, entende?

Assenti, embora confusa.

— É uma coisa antiga e perigosa, mas hoje em dia a garotada leva tudo na brincadeira, como foi o caso de seu... como é mesmo que se diz? Ah! Seu ficante — continuou o andarilho.

— Hein?!

— Ele foi seu primeiro namorado, certo?

— Bem... — hesitei, lembrando-me de tantas primeiras coisas que ele fora em minha vida.

— Houve um pacto de sangue quando ele a desvirginou.

Arregalei os olhos, fitando-o totalmente incrédula.

— Nem adianta me olhar assim, moça! — pediu ele, sem ao menos precisar olhar para mim. — Sei disso porque seu Anjo da Guarda me contou.

— Como?! — espantei-me. — Eu tenho um Anjo da Guarda?!

— Os humanos possuem um par de anjos, um da Guarda e outro... bem.. um demônio, o oposto do outro. São mais espíritos encarregados de guiarem a alma humana por certo tempo, algo que se encerra aos dezenove anos, quando a alma se torna livre.

— Sempre pensei que fosse lenda...

— Por trás das lendas se escondem as grandes verdades do mundo.

Não sabia se ficava constrangida por causa de ele saber sobre minha primeira vez ou surpresa por fazer parte de um Pacto de Sangue.

— Ele tinha um ferimento no dedo, não? — perguntou-me, fazendo-me ficar ainda mais sem jeito.

— Acho que sim.

— E você sangrou, certo?

Calei-me, envergonhada.

— Houve troca de sangue — continuou o peregrino, indiferente ao meu estado tão constrangedor. — Houve, portanto, um pacto. E você precisa pagar a sua parte.

— Eu não fiz pacto nenhum! — desesperei-me.

— Estéfane, para os Encomendadores não existe essa de fazer ou não de forma consciente. Foi feito e pronto. Houve um acordo estabelecido. E amanhã será o dia de vir receber o pagamento.

— Minha alma?

— Você e seu filho.

— Estou grávida?!

Parei subitamente, incapaz de raciocinar. Levei as mãos na barriga, tremendo um pouco.
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